terça-feira, 4 de novembro de 2008

dama de espadas












“Hey This life is never fair. The angels that we need are never there”
Coutney Love, America’s Sweetheart

Estava doente, outra vez. De noite, na cama de hospital escrevia, desanimado

Escuridão

Eclipses sucessivos do Sol
Flores deitadas fora
Cheiro a esgoto
Dias tristes
O coração desfeito
Madrugadas em branco
Um deus desaparecido
E os anjos escondidos
Jogos de crianças
Perco tudo
Sem força para vencer
Este demónio
Vicioso
Manhãs cinzentas
Tardes negras
Noites possuídas pelo mal
Pela enorme dor
Onde está o meu amor?
Olho para o céu
A luz cega-me
Não sei de nada
Não sei de ninguém
O nada
O desespero
O medo
Os espinhos das rosas vermelhas
A escuridão


No dia seguinte algo mudou e eu decidi, com alegria, relatar.
Esta é uma história aterradora sobre uma rapariga muito bela , um ser humano maravilhoso, alegre: uma graça. Aqui se narram, também, o desgraçado destino de um homem que quer, desumanamente agarrar-se à vida e ao amor, quando já não tem forças para isso.
John Cassavetes dizia sobre as suas obras-primas: “O que me interessa filmar? O amor ou a falta dele. Eis o que me interessa filmar.”. Eis aquilo sobre que me interessa escre3ver.

Um dia, no hospital, abri, por curiosidade, uma gaveta de um pequeno armário que suportava um telefone. Lá dentro encontrei um velho baralho de cartas, já incompleto. A única carta que estava virada para cima era a dama de espadas. Sem saber muito bem porquê, decidi guardar a carta no bolso do casaco de pijama, um pijama já muito puído, como só há nos hospitais. Espadas é o naipe mais nobre de um baralho. Uma dama de espadas tem um significado muito especial. Trata-se da dama mais fatal das quatro que constituem o baralho. É um trunfo valioso. Sempre me fiei mais no acaso do que na fé, no fado, ou no destino. Creio na liberdade e não no determinismo. Do caos nascem novas coisas, da ordem, nada. Talvez viesse a acontecer algo de inesperado e maravilhoso. A vida passeava-se tranquila pelos corredores e recantos da vida. Com alguns sobressaltos, é certo: mas isso faz parte da natureza das coisas.
Vivera uma vida plena: boémia, nómada, bebia uns copos a mais, dedicava-me a algumas substâncias que me faziam planar sobre a vida sem preocupações, tive as raparigas que quis, joguei, ganhei e perdi fortunas, dei lições de vida a meninas que podiam ser minhas filhas, dei e levei grandes tareias.... A velocidade, como vejo agora, foi grande demais, Mas não estou arrependido, faria tudo de novo. Não me podia queixar. No entanto, agora que pensava que chegara a vez de dar um pouco de descanso a este corpo gasto e farto de tudo, desprezando os que desde que doente me desprezaram. É uma lei da vida: Quando não temos saúde ou dinheiro toda a gente foge. Tornamo-nos párias. Não tenho nada contra os párias, aqueles que se estão a borrifar para as normas burguesas da sociedade. Até admiro muito alguns: Caravaggio, Rimbaud, Artaud, Gauguin, Genet, Pasolini, e tantos outros.

Mas falava em descansar... Eis senão quando conheci uma criatura divina. Parecia saída de um quadro de Modigliani. Talvez “Le Nu Rouge” : em tons ocre e vermelhos retratando uma rapariga morena, muito mediterrânica, cores da terra, étnicas. Quentes como o amor e a fraternidade. Quentes como o hemisfério Sul, onde me orgulho de ter nascido. Ou, talvez, mais apropriadamente, a bela e misteriosa “Justine”, de Durrel, do fabuloso “Quarteto de Alexandria”. Também aquela rapariga que eu conhecera, no seu entusiasmo, beleza e alegria contagiantes era quente, maravilhosa, secreta, com sentido de humor. Acreditei que podia ser seu amigo. Sem dúvida. Fiquei contente. Pensei que ela não me desiludiria. Nessa noite, ainda na cama de hospital escrevi, um pouco menos melancólico:



Ressurgir

Há golpes de sorte
E afinal há uns dias menos maus
As grades entreabrem-se
A percepção atinge os seus limites
Como no primeiro dia de muito sol e calor
Senti-me renascer
O meu coração como o rio sagrado
Corre nas nuvens
Os homens santos fá-lo-ão aterrar
Sobre a terra escaldante
E tudo voltará à realidade
Uma verdade sorridente
Como há muito não tinha

A verdade é que, até hoje, e apesar de lhe ter deixado o número de telefone, nunca mais ouvi falar dela…

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