terça-feira, 30 de setembro de 2008






Hoje é o aniversário da minha irmã mais nova, A Ana Maria, ainda jovem, é querida, amiga, fofa, paciente (teve de aturar três irmãos mais velhos...), é maravilhosa. Dá-me sempre a mão quando "estou a cair": doente ou outra coisa qualquer: ela está sempre lá. Para além disso é linda de morrer. Tenho que lhe agradecer por isso, e por muito mais. Muitos parabéns e muitos beijos.


Para os meus verdadeiros amigos e amigas. Eles sabem quem são


Para todos aqueles que
com carinho me têm tratado ;
tanto no hospital de Santa Cruz,
como na Nefro-Clínica
de Linda-a-Velha.
A eles devo o facto de
ter podido escrever estas linhas.
Obrigado, do fundo do coração.

solidão




Desfiladeiros de tristeza
Por onde deslizo
Sem respirar
Planícies sonolentas
Queimadas pelo sol
Do sofrimento
Montanhas sem fim
Por cuja dor
Não consigo trepar
Lágrimas secas
De tão ridículas
De chorar quase
Sem razão
Mas não é de razão
Que se trata
É de solidão

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

venetian blues



Um dia conheci uma jovem condessa italiana. A sala onde nos conhecemos estava semi obscura. Eu via mal. Mas a sua beleza rara não necessitava de luz. Os seus cabelos longo e escuros, um pouco desalinhados, selvagens – como eu tanto gosto -, diria, não deixavam dúvidas: estava na presença de uma rapariga maravilhosa, um pouco reservada. Nessa noite apaixonei-me por ela. Tem um sorriso lindo. Uns olhos escuros que fazem lembrar os mistérios de Veneza e uma sabedoria rara e secreta – Veneza é uma cidade cheia de sabedoria oculta - sobre as coisas da vida. Viaja na diagonal da vida tentando ter consciência de tudo o que considera importante. Se um destes dias a encontrar na Ponte dos Suspiros ou numa gôndola nas brumas de uma madrugada no Gran Canale, não ficaria nada espantado: nada de mais natural. Mas não é fácil encontrá-la, pode estar perdida no meio do denso nevoeiro matinal, esquecida de si própria numa ruela ou beco metafísicos, ou mesmo junto de nós, sem que o saibamos . No entanto, sem dúvida, encontrá-la-emos no nosso coração. Há qualquer coisa de secreto na sua beleza extraordinária, qualquer coisa de etéreo e eterno. Podia ser actriz de cinema, modelo, qualquer coisa… Preferiu tirar o curso de arquitectura para pôr um pouco de ordem neste mundo. Para nos orientar na confusão da cidade. E a cidade é o mundo. A sua grande beleza é um pouco sombria. É preciso ir à procura dela. Nada nela é óbvio Por isso sempre que estou com ela acredito que estou no meio de um misterioso filme ou dentro de um excelente livro. Ela faz-me sonhar. Felizmente! É uma rapariga intensa e maravilhosa. E ainda hoje estou apaixonado por ela. Creio que nunca lho disse. ..



manhã branca






É de manhã muito cedo. O dia acaba de nascer. A luz entra branca, quase parece gelada. Mas o dia cresce quente. Um dia de Agosto. Ela está em cima da cama, pele dourada, sem marcas de fato de banho ou biquini. O corpo nu, tal como os lençóis e os belos cabelos castanhos soltos e despenteados, estão ainda naturalmente desalinhados. Ela dorme ainda, linda, desconhece a beleza do que está a acontecer. Chego perto dela e beijo-lhe levemente os lábios. Maravilhosa, deve sonhar ainda. Naquele momento morreria por saber o quê. Uma morte momentânea é o que me espera quando a Sophie abrir, estremunhada, os belos olhos verdes. Algo que acontece momentos depois. Da janela que dá para o mar entra agora um sol amarelo orrado já quente: de facto e de aparência. O jogo de luz e sombra, sobre os seus seios e ventre perfeitos. O claro escuro daquela imagem persegue-me ainda hoje, alguns anos passados; as sombras nas pregas da roupa alva da cama e do corpo daquela jovem mulher maravilhosa fazem-me desejar a eternidade que, infelizmente, não existe. A não ser, talvez, por momentos – talvez como estes… Apesar de quase acordada, não se mexe ainda. Pisca os extraordinários olhos claros, sorri, mas não diz nada. Naquele momento, eu esperava uma palavra sua. A Sophie, estonteante, na sua sabedoria solar gozava aqueles momentos perfeitos que antecedem a realidade aborrecida. Beijei-a novamente e disse-lhe que a adorava. Acrescentei: “Meu Deus, como és bonita”. Ela sorriu com agrado mas não acrescentou absolutamente nada. Gostava que ela tivesse dito alguma coisa, mas não fiquei triste. Depois daquela noite sabia que ela me amava. E as palavras não têm muito a ver com o amor.

horrível infinitude



Há planaltos longínquos
Onde corre medo sem fim
A escuridão
Faz esquecer
Os sentidos morrem
E os desertos
Escondem-se
Nada continua
Nas alturas incomensuráveis
Das terras
Sem horizonte
Não há flores
Só horríveis ervas
Que sangram
Verdes
Choram
Na infinitude dos tempos
Das cicatrizes
Criadas na poeira
Da história
Onde não acontece nada
E ninguém se ouve os seus estridentes

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

sombras azuis



Assombrações
A cratera de um vulcão
Cores
O vazio
Preenche-me
As imagens
Terríveis
Os pesadelos
Têm sombras azuis
Uma planície intrigante
Cicatrizes
Depôs o horizonte
Como sempre
Tudo azul
Como sempre
Muito triste
Tal e qual as histórias
Dos marinheiros
E pescadores
Sombras azuis
Sempre
E o sirocco e o mistral
E naufrágios
Grandes tristezas
E alguma esperançaMa


Nunca ninguém chega a horas. Nunca ninguém tem horas certas.
Ninguém quer saber de ninguém. Ninguém quer saber…

fragmento



Não me interessa a tua realidade, o teu todo. Importam-me os teus fragmentos, as minhas realidades, os meus gostos. Os meus momentos não são, decerto, os mesmos que os teus. Apetecem-me os teus seios, tu, provavelmente, gostarias que desse atenção ao teu ventre. Gosto de captar apenas os teus lábios, hoje não me interessam os teus belos olhos. A visão de conjunto aborrece-me porque é banal, o todo nunca é todo perfeito, pelo menos em determinados momentos. Não me interessa a ideia totalitária representada por um sistema, mesmo que esse sistema seja o corpo de uma determinada e bela mulher, mesmo que a amemos, vamos encontrar-lhe sempre defeitos que, com o tempo se tornam irritações irreparáveis. O belo é o barroco, o ornamento de uns belos lábios, é o pormenor de umas pernas longas e perfeitas, é exagero de um ventre nu e descuidado.


mário rocha, in escritos nómadas


segunda-feira, 22 de setembro de 2008

"come as you are/as you were/as I want you to be" (nirvana)



Serenidade. Eis o que ele buscava. Uma espécie de Nirvana. Quem lhe dera… Cansado, doente, farto de trabalhar; teve, pelo menos a sorte de ser free-lancer toda a vida. Nunca teve patrões.
Foi jornalista, uma profissão nobre, como lhe disse, uma vez, um amigo que já cá não está. Teve oportunidade de verificar isso no Diário de Lisboa. De nobreza já não se pode falar acerca de todos os que exercem aquela profissão. Nunca foi ambicioso, nunca foi competitivo, por isso nunca teve dinheiro. Não se arrepende disso. Teve poucos amigos: “poucos mas bons”, como se costuma dizer…
Teve o suficiente para andar na valente borga e dar cabo da saúde.
Nos intervalos dos jornais foi assessor de imprensa na área do teatro e do cinema (TNDMII e Festival Internacional de Teatro), profissão ingrata e enjoativa: tem de se estar sempre a cravar favores aos antigos colegas jornalistas.
Como jornalista colaborou no DN, DL, O Liberal (onde começou), O Independente, Expresso, nas revistas Tempo Livre, A Cidade e as Terras, Grande Reportagem.
Muitas regras e muitas exigências quanto a questões de forma, encheram-no de raiva. Por essa altura adoeceu. Estranha coincidência! Esteve em vários hospitais e recuperou um pouco de saúde. Não foi recuperado para o jornalismo; nem recuperou os amigos que fugiram após a sua doença. Ainda bem! Assim, arranjou tempo para o seu amor de sempre: a literatura. Gosta dis clássicos russos, franceses, ingleses, de literatura grega, de Cardoso Pires, Al Berto, Nuno Bragança, Camões, Shakespeare, Holderlin, Lorca Al Berto B. Santareno, Carver, Hemingway, Strindberg, Genet, Sartre, Camus, etc. Admira ainda Fernando Lopes, Bergman, Tarkovski, Cassavetes, Caravaggio, Delacroix, Géricault, Velasquez, Goya, Rafael, Bacon, etc. É anarquista, com uma componente social muito alargada. O seu sonho, neste campo é escrever um grande romance sobre o amor por uma grande trapezista, a mais bela das mulheres. Durante uma actuação algo corre mal e ela morre; o que acontece ao amor e ao amoroso? O que é a vida sem a criatura amada. Sofrimento ou suicídio?... Neste momento está a escrever uma nova peça de teatro “A puta e a virgem” e um romance, “Dolores”. Gosta de conversar com os seus leitores, fazer “literatura à margem”. Responde com amizade a todos os amigos leitores e agradece as críticas. Falem com ele através de mariojscr@gmail.com

sábado, 20 de setembro de 2008

a tempestade



O rochedo com o farol, abandonados no meio do mar, são devastados por sete ventos irados. E vinte correntes contraditórias. Ventos de morte, gelados. Ondas que igualam ou superam a altura do edifício e engolem tudo. Relâmpagos e trovões, que fazem tudo tremer e abanar. O frio é insuportável. No seu refúgio, na sua cela monástica, o faroleiro tenta aquecer-se. O medo não o permite – treme por todo o lado, incontrolavelmente -, naquele quarto, mais singelo e silencioso que o de um monge que tenha feito votos de silêncio, pobreza, castidade e tenha renunciado à sociedade. E lá está o crucifixo, por cima do catre do faroleiro – que nestas coisas do mar.... Por esta altura, de tão danificado, o farol já não tem utilidade, a luz intermitente extinguiu-se, já não guiará mais ninguém.. Resta a vida do monge faroleiro que tanto ama a tranquilidade, o sossego, a possibilidade de meditar, que lhe eram impossíveis em terra. Por um lado, amava o mar., por outro, devido a um devastador desgosto, decidira abandonar o mundo. E ali estava agora a aguardar a inevitável morte. Não a temia, por vezes até ansiava por ela. Mas o que estava acontecer – que ameaçava desfazer o velho e belo farol (e a ele também), aterrorizaria qualquer um, mesmo o mais bravo lobo do mar. Decidiu morrer, logo ali, no meio da tormenta. Num dos cantos do quarto encontravam-se umas asas, que ele acreditava serem as asas de Ícaro, encontradas no mar que circunda a ilha de Samos, não muito longe dali. Tal como o filho de Dedalo e da escrava Naucrate, colou as asas aos ombros com cera e aproximou-se de uma pequena e segura janela que havia no quarto. Abriu-a e, após alguns momentos de meditação, medo e algumas lágrimas, lançou-se. Em vez de cair em direcção ao mar, como pensava que ia acontecer, notou que conseguia manobrar as asas e decidiu subir, tentar ultrapassar as nuvens negras e tempestuosas. Fê-lo rapidamente, até encontrar o sol brilhante, quente e belo. Tal como o herói grego, esqueceu-se do conselho de Dedalo e subiu demais, o calor do sol derreteu a cera das asas e o Ícaro faroleiro caiu no mar, pela tempestade abaixo e, no meio de grande dor e sofrimento, mergulhou no mar alteroso que o matou de imediato. Não teve tempo de encomendar a alma nem de um último pensamento. Nem sequer teve oportunidade de se lembrar do motivo porque estava ali, retirado de tudo.

Excerto de escritos nómadas

tocado pela morte



No meio da noite e da chuva está um tipo. De sobretudo negro com a gola levantada. Fuma enquanto caminha sob a chuva, e protege o cigarro debaixo da palma da mão, mal iluminado pelos poucos candeeiros de rua. Está triste, creio. Caminha encolhido, de certeza por causa do frio. Vagueia, parece. Um amor que acabou, uma paixão que não chegou a concretizar-se? Desejaria por certo um amigo, um filósofo, um sábio. Deveria procurá-lo. Conhece um velho sábio que viveu muitas vidas e, de borla dá lições de tudo. Mas não tem coragem. Depois desta noite, tudo se tornou denso e difícil, cansativo. Parece que já nada vale a pena. E, aliás: o que é que o amigo ou o filósofo ou o sábio, saberiam sobre este amor ou esta paixão? Para além de tudo mais, está bêbedo, parece-me.


Ziguezagueia, vagueia, já disse. Olhos no chão, mãos enterradas nos bolsos. Cada vez mais encolhido. Se calhar gostaria de ouvir um longo e doloroso lamento de trompete. Chet Baker: talvez, mas ao vivo, num pequeno bar fumarento, com cheiro a cerveja morna e a putas.
Mas já nada é possível. O grande Chet Baker foi-se, carregado de heroína. O tipo que está na rua está cansado, muito cansado, parece. Resta-lhe continuar a caminhar e pensar compulsiva e tristemente numa mulher. Bonita… Pára debaixo de um candeeiro, chove muito. Está ensopado, bastante. Está tocado pela morte, tenho a certeza.
Excerto de escritos nómadas a publicar brevemente em lulu.com

yellow rose blue



Choro sobre
O silêncio
Medonho
Das rosas cinzentas
Feitas de pano
Cobertas de pó
Esquecidas
Debaixo das
Sombras
Triste
Escorrem-me lágrimas
Cor do oceano
Aqui mesmo
Em frente
A violência
Das marés
E a melancolia
Provocam sono
E vontade
De matar
Vejo de repente
No meu sono
Maravilhosas rosas amarelas
Acordo
E caem-me sonhos
Pelo corpo
Abaixo
Fico seco
E vazio
Como o mais selvagem dos desertos
Estou sozinho

tenebrosos olhares



Nuvens de névoa
Húmida
E translúcida
Montanhas sem cume
À vista
Tenebrosos olhares
Sem fim
O desespero
Que me chama
A todo o segundo
Uma gaja linda
Com os lábios tão vermelhos
Tem uma rosa na mão
Com os espinhos incandescentes
Sangue escorre pelos dedos
As pétalas são da cor do seu sexo
Paisagens de dor sublimes
Passagens secretas
Amantes zangados
Túmulos revolvidos
Cadáveres à solta
E tu simples
Sem amor
Sozinha
Nuvens de névoa húmida
Rastejam do além
Procuram-te
À tua vida
Que julgas
Está no fim
Escondes-te
Encoberta
Num túmulo
Vazio

Ecerto de canto(s) do desespero

eu e tu



Um dia compreenderás
Que é bom viver
Mesmo sem nada
Ninguém te oferecerá flores com pétalas
Ninguém te beijará as lágrimas
Com os lábios escarlates e escaldantes
Porque não há verdadeira coragem
Nem amor nem ódio
Porque já não há nada
Só eu e tu.

Excerto de canto(s) do desespero, a publicar brevemente em lulu.com



o homem dos dias tristes



Todo ele é seco como uma folha caída no chão pela forca da tristeza do Outono. Todo o seu ser, físico e espiritual. Pelo menos é o que me parece daqui; a duas mesas de café de distancia. Falo acerca de um local onde vou todos os dias tomar um café, ao fim da tarde. A pessoa de quem eu falo vi-a, pela primeira vez, no fim do verão passado, num dia feio, cinzento. Apesar de quente prometia chuva. Este homem de quem lhes falo, nunca o vi num dia bonito, com sol, pessoas a sorrir e a discutir assuntos sem interesse – tal como a qualidade dos anzóis para a pesca ou a ultima aquisição de uma qualquer equipa de futebol. Não, nada disso. Neste café, já de si semi-obscuro devido à estranha iluminação, há um homem que me fascina: só o frequenta nos fins de tarde de dias tristes. Pelo menos, assim me parece. Já experimentei várias vezes sair de casa em dias assim, só para ver se ele esta lá. E a verdade é que lá está sentado na “sua” mesa – sempre a mesma; num canto está a sua figura esguia – muito magra mesmo –, como a de todos aqueles que bebem muito. À sua frente, na mesa estão uma chávena de café, há muito bebido, e uma taça de tinto que ele vai tomando em golinhos muito pequeninos, de tal forma que chega a irritar quem está atento à sua cerimónia, pois parece que a taça não tem fim. No entanto, de quando em quando, lá vem o empregado, que é também o proprietário, encher-lhe o copo novamente. Durante o muito tempo em que permanece no café mantém-se absolutamente imóvel, exceptuando o movimento do braço direito para segurar no copo e nos cigarros. Tem sempre um aceso. Aquela impassibilidade é assustadora – pelo menos para mim que fico ali horas fascinado à espera de algo inédito da sua parte. Isso nunca aconteceu… O seu rosto tal como o corpo esta imóvel, seco e encovado, pleno de rugas. Preocupações, creio. Apreensão: quem se lembra da face de Platão em “A Escola de Atenas”, pintada pelo grande Rafael sabe ao que me refiro. Ao que ouvi, sussurrando, aqui e ali, aquele homem já ganhou e perdeu inúmeras fortunas ao jogo. Já ouvi um comentário nestes termos acerca deste homem que só surge nos dias tristes: “Como é que ele alimenta a família?” ou “Como é que ele arranja dinheiro para os copos?”. Ninguém tem resposta para estas questões. Claro que como acontece a todos os alcoólicos e a todos os jogadores, este tipo quer manter uma réstea de dignidade; assim, está sempre impecavelmente barbeado e vestido, apesar de a sua indumentária parecer sempre a mesma. O olhar deste homem, com cerca de 55 anos de idade, esta sempre fixo, sem pestanejar, algures no curto horizonte que é o balcão em alumínio do estabelecimento. O seu espírito parece também permanecer inerte. Ele transmite uma semiótica da tristeza que parece magicamente colar-se a todos os que se encontram no local – trabalhadores das obras, pessoas que chegam dos seus empregos nos comboios suburbanos e vão ali beber um copo (a estação de comboios fica ali mesmo ao lado), antes de se dirigirem para o martírio do lar, desempregados de muito longo prazo, etc. Olhamos com admiração e algum encanto para aqueles que, como ele, o homem dos dias tristes, voluntariamente voltam as costas à mediocridade do comportamento comum. Os que têm a coragem de fazer isto são considerados perigosos e, muitas vezes, loucos porque são honestos, simples e livres: as qualidades mais perigosas que um homem pode possuir.
É clara e comovente a sua vontade inquebrável de querer ser aquilo que é. Um dia tive oportunidade de assistir ao fim da sua solitária orgia dionisíaca: o acto de pagar. Para isso, já depois de muito bêbedo, faz um esforço sobrenatural para se levantar sem cambalear – é o ultimo acto da sua réstea de dignidade, de que já falei – como se todos os que ali se encontram não conhecessem já o seu estado. Uma vez em pé, tira as coordenadas a um ponto disponível do balcão e, com a voz arrastada, dirige-se ao empregado: “Quanto é que eu devo?”. Depois, sem se dirigir a ninguém encaminha-se para a porta, vacilando o menos possível. Depois disso vai sentar-se numa tasca que fica a cem metros do local e repete o ritual: um café e uma taça de tinto que é enchida muitas e muitas vezes antes de ir embora para casa, ao fim da noite (nas tabernas parece que é sempre de noite…). Um dia fui espreitar a tasca e lá estava ele sentado, sozinho, num pequeno banco, com o olhar fixo numa parede, rosto talhado em pedra, frio. A caligrafia do(s) seu(s) estado(s) de espírito é ilegível.
Na sua infinita sabedoria, ele tem a noção de que a vida é assim: cada um escolhe e cumpre o seu destino. Nos extremos da eternidade está o nada, não interessa qual escolhemos desde que cumpramos criteriosamente a nossa tragédia inevitável e inimitável.

Excerto de contos malvados a publicar brevemente em lulu.com

carmen e os piratas




O responsável pelo porto está tranquilamente sentado numa cadeira de lona, que um dia terá sido branca, à sombra dos quarenta e tal graus que se fazem sentir. Está sob um enorme guarda sol, branco, muito sujo e já muito usado. E em muito mau estado.
Ao seu lado, numa pequena mesa, estão uns binóculos e um copo que fervilha de gin tónico, a transbordar de gelo. Está calor, muito calor, a humidade está próxima dos seus valores limite: é inumano!; o comandante do porto abana-se lentamente (para não gastar nem um pingo de energia a mais) com um velho jornal incompleto e encardido, escrito numa qualquer língua desconhecida.
Apesar do guarda sol e dos líquidos abundantes, Adams, o comandante do porto, sua imenso. Sobre os cabelos grisalhos e desalinhados, tem um boné previamente molhado. O boné de tão esburacado, praticamente, não tem utilidade. Mas Adams é um homem apegado às suas coisas, às suas parcas possessões. Numa mão tem um lenço a escorrer suor, passa o trapo, de cor acastanhada (deve ter sido de outra cor, em tempos há muito passados), mecanicamente, pela face e pelo pescoço. Na outra mão tem um coto de charuto, há muito apagado e quase a desintegrar-se, de tão manuseado, tanto pelos dedos, como pelos lábios. Tirando isto, está absolutamente imóvel, com o olhar estranhamente fixo no horizonte. A sua face enrugada, envelhecida e com barba quase branca e muito forte, tem para aí uns quinze dias. Tudo isto lhe dá um aspecto assustador, ele é um homem grande. Uma vantagem que ele não descarta.
O porto, em forma de u também está velho e gasto; há manchas de ferrugem a escorrer por todas as paredes, e pelo cais onde atracam as embarcações. Muita porcaria (mais ferrugem incluída) encontra-se na grande quantidade de arruinados barcos que estão atracados no pequeno porto. As embarcações parecem estar ali há séculos e, à primeira vista, parece que nunca mais sairão dali – puro engano... O movimento é grande, embora quase não se dê por ele. Aqui e ali há homens em tronco nu, com um aspecto muito sujo a carregar e descarregar grandes pacotes de mercadorias.
Ao fundo, do lado esquerdo de Adams, está todo o material necessário para colocar combustível nos barcos., lá se encontram muitos barris e uma enorme grua. Por toda a parte, sobre os paredões, existem, em locais estratégicos, vigias com grandes e poderosas armas pesadas. Cada uma delas tem um homem de serviço 24 horas por dia, não importa o calor que faça.
Ao contrário do que acontece na realidade, o mundo parece estar parado e a derreter, perante as centelhas vermelhas que chispam do horizonte, já ao fim do dia.
O comandante do porto está de tronco nu, a pele muito bronzeada de tanto sol, durante tantos anos. Apesar de tudo, parece as cinquenta .primaveras que tem; os olhos são cor do mar das Caraíbas (onde se localiza o porto), cristalino e perigoso. Não há mulher ou jovem rapariga que lhe resistam. Apesar de todas as cicatrizes da vida.
O comandante do porto continua a abanar-se com o jornal e continua a encher de pouco em pouco tempo, o copo com gin e água tónica, a hora do almoço ainda vem longe.
De repente agita-se, levanta-se da gasta cadeira de lona, agarra nos binóculos e perscruta longamente o horizonte e os movimentos das lanchas que por lá andam e que ele conhece de memória. Dizem que conhece todas as embarcações oriundas das Caraíbas. Nesse momento, algumas dezenas de homens, em calções e tronco nu, saem não se sabe bem de onde e vão reforçar as posições nas vigias ao longo das paredes do porto. Alguns segundos depois, Adams senta-se de novo e tudo volta ao normal – vagarosamente, os homens que tinham reforçado as defesas voltaram aos locais onde se encontravam. Tudo volta ao normal. Naquele local já muitos foram mortos a tiro ou agrilhoados no cimento fumegante do chão (e ali ficaram a fritar até à morte, sem direito a pinga de água ou de comida), tudo por causa de um mero olhar mais indiscreto sobre a sua companheira, Carmen não se preocupava com nada disto. O seu amante, Adams era dono e senhor do porto, dela – apesar de Carem ser muito senhora do seu nariz e de, por vezes, ter um feitio mais aterrador que o comandante -, bem como de todas as pessoas que se encontravam na pequena ilha.

II.
O sol está no seu pico mais vertical, deve ser perto do meio-dia; por detrás do local onde se encontra Adans, surge a mulher mais espantosa que se possa imaginar: nunca ninguém viu nada de semelhante. Veste (?!) o btquini mais reduzido de que há memória. Mostra mais do que esconde A Carmen, companheira do comandante do porto, anda sempre por ali à vontade. Claro que é objecto de desejo por parte de todos os homens e algumas mulheres que por ali se encontram rodeados de água por todos os lados. Mas Adams impõe tal respeito, que ninguém se atreve a mais do que um olhar, e mesmo assim, de soslaio.. Não dispõe de misericórdia, é implacável, e mata por dá cá aquela palha., à cintura carrega sempre uma pequena , nas extremamente poderosa metralhadora. No que diz respeito à Carmen, está bem de ver, nem sequer pestaneja... Passeava-se por onde queria, com o seu microscópico biquini, imaculadamente branco. Adams tinha-lhe oferecido um “barquito” com cerca de 20 m de comprimento, onde ela se deslocava – com a tripulação privativa de nove pessoa, que, a qualquer hora do dia ou da noite, estavam prontos para o capricho de um mergulho da rapariga, em águas mais profundas. Parece que até os tubarões receavam atacar Carmen, com medo das represálias do comandante do porto.. Durante os seus mergulhos diários, todos, homens e mulheres, se punham à coca para desfrutar da beleza e harmonia dos mergulhos da bela jovem . Tudo isto às escondidas de Adams. Depois de nadar um bocado, subia para o barco e, com movimentos sensuais – sabia que toda a gente a observava –, tirava o biquini e deitava-se a torrar sob o belo e quente sol das Caraíbas. Ainda ninguém percebera se o brilho permanente da sua pele se devia ao suor permanente ou a algum bronzeador. Mas perante tal beleza quem queria uma resposta para esta questão menor? De vez em quando, a rapariga banha-se ali mesmo, numa piscina que existe no porto e onde o comandante controla melhor os seus movimentos e, também os mirones. Olha sorridente para a sua bela “propriedade”. O certo é que escapa sempre, mesmo que involuntariamente, um olhar indiscreto e de desejo.

III:

Descrever a Carmen é uma tarefa hérculea, como fazê-lo? Talvez por analogia? Agarre-se em Angelina Jolie, Monica Belluci, Gisele Bundchen, Pamela Anderson e escolha-se o melhor de cada uma; multiplique-se por dez e aí está ela, a Carmen. Polvilhe-se tudo isto com uns pozinhos das personalidades excessivas e truculentas de Kate Moss, Naomi Campbell, Amy Winehouse e uma porcalhona das ruas de uma qualquer cidade da América do sul e aí está a namorada do comandante no seu melhor: o que não é pouco. Uma pérola inigualável das Caraíbas. Um conjunto explosivo que fala castelhano com sotaque e um pouco de inglês, o suficiente para se entender naquele pequeno local.
Adams tinha um grande orgulho em exibi-la pela ilha, passeando-a como quem passeia um cão, por vezes, com trela e tudo, para não haverem dúvidas quanto ao direito de propriedade, e também para a pôr na ordem, que nem sempre a Carmen se portava bem... nunca ninguém se atreveu a negar um desejo à Carmen, os seus desejos são ordens, nem Adamas se atreveria a tanto. Não é agradável ver um ciclone caribenho a varrer uma pequena ilha..
A nacionalidade da bela rapariga era desconhecida de todos, até do comandante do porto e mesmo de Carmen, ela própria; nas nada disso era importante.

IV.
Tinham uma bela casa de dois andares com piscina (exigência de Carmen). Situava-se num pequeno promontório colocado atrás do paredão central do porto. À sua volta havia muitas dezenas de outras casas, nenhuma tão elegante como a de Adams, claro. Existiam muitos armazéns, uma ou duas pequenas lojas, um minúsculo hospital, um bordel com umas dez belas e pobres raparigas; e era tudo. Da casa de Adams via-se o mar desde o porto até ao horizonte.

V.
Por vezes, durante alguns dias, Carmen desaparecia. Deixava-se ficar em casa ou no hospital do médico perneta (mutilado por uma vida de excessos e zaragatas com as pessoas erradas). De quando em quando a rapariga, bem bebida gostava de ser amarrada mãos no tecto, pés numas argolas colocadas no chão e pedia a Adams que lhe fizesse mal. Que a magoasse. O seu companheiro agarrava então numa tira de cabedal, cravejada de pequenos pregos, pedaços de lâminas e outros metais; ela era fustigada (com grande prazer do comandante) até desmaiar. O sangue escorria por todo o lado, o comandante reanimava-a à bofetada. Depois ela dizia que só o sexo anal a excitava – garantia que tinha gigantescos orgasmos desta forma – queria ser possuída com violência – clamava que se tinha portado mal, que tinha sido uma menina má, que merecia todos os castigos do inferno. Adams não se fazia rogado. Nessas noites a rapariga bebia muito, fumava muito ópio, estava fora deste mundo e do outro também. Nos dias seguintes o médico perneta tratava dela o melhor que sabia e, miraculosamente, as marcas desapareciam daquele corpo de deusa. Durante o tempo em que ficava fechada para se tratar gritava e chorava muito e muito alto, de tal forma que se ouvia por toda a ilha. Já ninguém ligava, já sabiam do que se tratava e já estavam habituados. Enquanto o seu belo traseiro era maltratado pelo comandante, Carmen despejava mais uma garrafa de rum. Quase em coma, só perdia os sentidos depois de Adams se ter aliviado dentro da sua boca. Enquanto lhe rebentavam o rabo, Carmen dava risadas medonhas de prazer, apesar da dor. No fim, o comandante do porto assustava-se um pouco, chamava o médico aos gritos, enquanto aviava de valentes bofetadas a face da bela rapariga. O perneta chegava, olhava para os estragos, abanava a cabeça em sinal de reprovação (mas não muito), fumava num pequeno espaço de tempo quatro ou cinco cigarros, nervoso de tanto medo, chamava ajuda e levavam Carmen de maca. Durante estas sessões de sexo (?) selvagem misturavam-se, pelas pernas da jovem, de forma assustadora, sangue, suor, lágrimas e fezes. Que a rapariga a partir de certa altura urinava e borrava-se toda. O médico bebia uns copos valentes no bar local e no bordel, no meio da bebedeira deixava escapar pormenores da carnificina. Os seus companheiros de bebedeira adoravam ouvi-lo discorrer sobre o belo traseiro da rapariga desfeito, so bre o seu ânus escancarado e a sangrar abundantemente. Alguns não resistiam, de tão excitados e masturbavam,-se logo ali, sem qualquer tipo de vergonha.

VI.

Um dia Adams disse à bela jovem, com um ar muito sério, que vinham aí dias complicados, iam chegar vários navios, muita gente e ainda mais mercadoria. Ela não ligou nenhuma mas ficou estranhamente perturbada. Respondeu-lhe em bom castelhano: “E o que é que eu tenho a ver com essa merda?” Adams deu-lhe uma valente bofetada com as costas da mão, que fizeram sangrar os lábios sensuais da sua companheira e respondeu-lhe: “Não quero merdas. Não quero conversas, nem bebedeiras, com quem vai desembarcar, estás a perceber, grande porca!” A Carmen nem respondeu, aborrecida com os lábios já inchados e a escorrerem sangue para o seu extraordinário e microscópico biquini branco.

VII.

Um dia, após o almoço, Adams e a companheira estavam no terraço do segundo andar da casa que habitavam. Estavam tranquilamente a fumar e a beber um rum saboroso e antigo, quando o comandante deu um salto inesperado até à borda do terraço. Era o seu apurado sexto sentido que lhe dizia que algo estava errado. Carmen sonolenta e desinteressada disse apenas: “Sossega, puta madre, preciso da minha siesta”. Rápido, Adams, foi-se a ela e com um directo, rebentou-lhe a cana do belo e imaculado nariz e abriu-lhe uma série de feridas que ainda não tinham sarado, desde a última cena de pancada e acrescentou “Cala-te grande puta dos infernos, ninguém te perguntou nada, que se foda a tua siesta!”. Ela olhou com um sorriso desdenhoso e não reagiu, nem se queixou, não disse nada.
Ele agarrou nas suas armas e dirigiu-se para o local onde costumava receber os amigos piratas, com as suas valiosas mercadorias. Esse local era mesmo à beira do cais principal do porto, o cais central. Nessa altura, apesar de se tratarem de amigos, as vigias com as armas pesadas já estavam a postos: “; com piratas, há muitos meses sem ver terra, nunca se sabe...”dizia Adams, muitas vezes – também ele fora pirata durante muitas décadas. Sempre com as suas armas à mão, o responsável pelo porto recebia os seus companheiros um a um, com satisfação e uma valente palmada nas costas nuas e alagadas de suor.
De repente chegaram mais lanchas rápidas plenas de piratas que manuseavam armas pesadas – inclusivamente, armas anti carro para destruir as armas pesadas do porto - e disparavam sobre tudo o que mexia. Um dos primeiros a cair, agarrado ao ventre e a gritar a plenos pulmões que ia morrer, “puta de vida, grandes cabrões!”, foi Adams, não sem antes despejar o carregador da sua UZI, sem saber muito bem para onde. Em pouco tempo tudo acabou. Havia corpos e incêndios por todo o lado, bem assim como um pronunciado cheiro a pólvora e a morte.
As habitantes permanentes do bordel e do bar, bem como os feridos do pequeno hospital, foram também varridas pelo fogo dos lacaios de James, o pirata mais temido das Caraíbas. De pé, mãos nas inacreditáveis ancas, imponente, frente-a-frente com o novo dono do porto estava a esplendorosa Carmen, ainda a sangrar. James disse-lhe, com um grande sorriso e já a babar-se um pouco: “grande puta! Eu não te disse que não demorava?”; “Sim avisaste-me e eu esperei muito por ti, hijo de puta. Estão à espera de quê? Já se esqueceram onde é a minha cama?”. O pirata vencedor deu uma gargalhada alarve e disse: “Claro que não! Vamos a isso!”. Assobiou para os seus homens, cerca de vinte. Passados um ou dois minutos, havia uma fila enorme à porta do quarto de Carmen, que bebia com eles quantidades inacreditáveis de rum. Depois gritou, já sem a parte de baixo do famoso biquini branco, “venha o primeiro”, entre urros animalescos e cenas de pancadaria, um pirata com cerca de dois metros de altura e um pénis gigantesco, de arma na mão tirou as calças, cheirava mal, o cheiro era nauseabundo. A jovem estava de costas para ele, à espera da penetração. A besta avançou erecto e entrou pela vagina de Carmen. Esta saiu bruscamente da posição em que se encontrava e berrou, no meio do maior caos sonoro que se pode imaginar: “En el culo, cabron”. Levanta a enorme pistola que tinha na mão e rebenta com a cabeça ao gigante, que nem chegou a saber o que lhe tinha acontecido. Recebeu uma avalanche de gargalhadas e palmas, houve brindes à rapariga, sobretudo de James, que estava divertido numa poltrona a ver o que se passava. “En el cuuuu... looo, cabrones!!!”, voltou a gritar , com um sorriso nos belos lábios. Pela noite dentro a rapariga despachou todos os homens. James aliviou-se duas vezes. Coberta de esperma, com o ânus a sangrar abundantemente – como faria agora que o médico perneta tinha sido decapitado? Alguma coisa se arranjaria... - no calor da noite caribenha, Carmen saiu de casa, nua, a correr e deitou-se à piscina, bem iluminada, de casa, cuja água rapidamente adquiriu um tom vermelho. Saiu um pouco mais aliviada e limpa e dirigiu-se a casa (onde ainda se encontravam uma dezena de piratas a masturbar-se, sem qualquer pudor – a rapariga correu com eles a tiro. Já se tinha divertido. Agora queria ficar a sós com James. Perante a perspectiva de herdar todas as propriedades de Adams, – Carmen inclusive - deu uma gargalhada monstruosa e penetrou a rapariga, mais uma vez por trás. As dores eram horríveis, mas ela estava a adorar todos os momentos. E disse: “Eu não te tinha dito, pelo rádio, que podiam vir à vontade?”. “Não te sentiste mal por seres a responsável pela morte de Adams?”. “Não, nada. Ele era um animal! Não sabia dar-me carinhos como tu me dás...”. E riu-se noite dentro com a cumplicidade do seu novo e querido companheiro e proprietário.

mário rocha, excerto de contos malvados, a editar brevemente em lulu.com



Os espinhos de uma rosa
O choro de jovens meninas
Dores no coração
Uma lágrima escorre
Um jogo de cartas
Os teus olhos vermelhos
Bandeiras negras esfarrapadas ao vento
A fome
Os dados não param de rolar
Mas com a pele muito seca
O teu sexo e os teus seios
Nuvens de pétalas violeta
Cuspo-te na face
Sorris-me se

Mário rocha, excerto de noite lenta, a publicar brevemente em lulu.com




Fica o deserto
Ficam os nómadas
Nevoeiro
E a urze falecida
E a febre, muita febre
A névoa sombria e húmida
Sobre as tumbas
Lá dentro estão os inúteis
Corpos, espíritos, vontades
Vaidades e luxos
E o orgulho
E a inveja
E os falsos amores
Os sofridos amores
(Como alguém cantou “Love is na Angel disguised as lust (...)) (II)
Acima do térreo

mário rocha, excerto de noite lenta, a editar brevemente em lulu.com

o teu corpo

Nua
Tão bela e simples
Como a cor verde
Transparente de um mar
Paradisíaco
A terra quente
Sem sombras
A não ser a floresta negra
Do teu generoso
Sexo
Dá frutos sem fim
As maravilhosas montanhas
Que são os teus seios
Tocam as nuvens do céu
As tuas mãos estranhas aranhas
Que me acariciam
E a tua boca os teus olhos e os teus ouvidos e as longas pernas
Perfeições da natureza
De que tanto me orgulho
E que gosto de tocar
Causam-me medo
E ciúme
De tão bonito
E único
Que é tudo


Poemas de mário rocha a editar em breve na ed. Lulu.com son o título lágrimas de vento.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

lágrimas de vento


Choro lágrimas
Sem fim
Lágrimas de vento
Que se vão
Como um furacão
Pérolas cor de pôr-do-sol
Sonhos
Azul turqueza escuro
Tristezas incontáveis
Incalculáveis
Dragões cospem fogo
Vermelho e amarelo
Mortal tudo
Morte sem sangue
Morte tua
Depois de uma
Vida incandescente
Tão rápida e vazia
Sem lugar
Não te sobrou nada
No coração
Para mim














o círculo

Estou preso
dentro de um círculo
Traçado em tempos
Imemoriais
Por grandes espíritos
Mágicos
Daqui vejo mal
O seu perímetro
Vou tentar fugir
O perigo
É mortal
Desespero
E medo
Tomam conta de mim
Nesta forma
Que dizem
É perfeita

curiosidade

Olho para a palma da mão
Onde jaz
Uma minúscula pedra
Qual o seu segredo
Tento desvendá-lo
Dar-me-ia prazer
Falta-me o tempo
A areia
Da ampulheta
Esgota-se
Os deuses
Não me permitam
Voltá-la
Outra vez

desaparição




De tão profundas
Que são
As minhas cicatrizes
Sangram eternamente
O sal nas feridas
Faz-me chorar
De ódio e raiva
Lágrimas de cristal
Que me arranham a face
E a alma
Dores por ti
Que não te vejo
Na sombra
Para sempre
Vejo ondas
Çá ao fundo
No mar
Que vão e vêm
Aparecem e desaparecem
Mas a ti não
Não te vislumbro

longe


Gosto de te ver
À distância
Longe
Do exterior
Para te compreender
E conhecer
Para poder
Amar-te
Ao quente sol
Do curto dia
E sonhar
Contigo
Nua
E tão desejável
Durante a infindável noite
À luz
E ao frio
Das estrelas
E das luas novas
E cheias
Enfrentando o perigo dos elementos
Materiais
A chuva
O vento O fogo
A terra
Servir-te-ei de escudo
Nas tardes escuras do Outono
Que chega mais uma vez
Para nos advertir
Contra o perigo
Da doença
E da morte
Amo-te tanto
Mas não consigo
Compreender-te
Mesmo daqui
De tão longe


a cidade


A cidade é escura
Lodosa
Plena de mistérios
Vidas
Na estranha corda
Do equilíbrio
Da sobrevivência
Chove
Há fome e doença
E tiros
E navalhadas
Aqui e ali
Nada tem valor
Aqui onde todos esfolam todos
As pessoas caminham pela humidade
E pela sombra
Sorrateiros
Escondidos
Do perigo
Temem pela sua vida
Bebem vinho podre
Fumam beatas do chão
Estão-se cagando
Para adeus e para os deuses
Nunca
Mas nunca choram
Nem uma lágrima
Nem um afecto
Só sexo podre
Nas esquinas
E nas pensões
Tão sujas que são
Se podem dizer

o porto


É Verão, a tua mão na minha, suamos. Cambaleamos um pouco: uns whiskies e erva a mais. Mas sabe bem. Parece que caminhamos sobre algodão numa terra longínqua que só nos conhecemos. Esta sensação aproxima-nos ainda mais. Mas preferia a minha mão no teu seio ou no teu suave e húmido ventre Beijamo-nos; os beijos ardem, mas sabe-me a pouco. Gostara de sentir a totalidade do amor. O amor é total. Caminhamos juntinhos, agira abraçados pela cintura, apaixonados. O calor cola as vestes ao corpo e eu digo-te: “Meu Deus, como és maravilhosa!”. E ela, que sabe que eu falo verdade, oferece-me um sorriso que nunca esqueci. Acrescenta, meiga: “Meu amor…”O meu coração disparou. O acréscimo de energia fez-me bem, soube-me bem. Estava necessitado dele. Acho que não lhe vou dizer nada, pelo menos agora… Chegamos ao pontão; mal iluminado por velhos candeeiros públicos a necessitar de reforma. Só um ou outro funciona. Estamos ainda colados um ao outro, num abraço infinito.. Sentamo-nos à beira do pontão a balouçar as pernas no nada, ou melhor, a balouçar o nosso amor. Beijamo-nos de forma um pouco selvagem, aprisionamos as estrelas e todas as luzes da margem oposta. São todas nossas, só nossas. Lá longe há um farol que, de quando em quando, ilumina um velho cargueiro, ferrugento, que espera a sua vez de atracar. Nessa madrugada já distante, continuámos a amar-nos e fizemo-lo secretamente num pequeno areal ao lado do pontão. Ninguém nos viu. Concordámos que esta era uma verdade inegável. Ninguém passou por ali, acreditámos. Atrás de nós, longe, ainda, o movimento, os néons dos bares e discotecas – um pouco duvidosas -, as putas, os chulos, os clientes, os dealers, os pobres viciados, os patifes um pouco manhosos, armados de velhas navalhas ou de outras peças de antiquário, à espera de uma vitima. Aqui e ali vê-se um polícia sem grande vontade de trabalhar, de desequilibrar esta paisagem urbana que se encontra num equilíbrio tão precário. De manhã o calor aumentou bastante. Preparámo-nos para ir cada um para sua casa; pelo caminho, paramos numa esplanada decadente, como são quase todas as coisas junto a um porto. Bebemos cafés e muita água fresca. Cheirava a maresia. Um cheiro intenso, pelo qual não tínhamos dado naquela maravilhosa madrugada. Lembro-me de tudo ainda hoje. Foi a melhor noite da minha vida.

mário rocha in contos malditos edição lulu.com



blue


E a subjectividade, sempre a subjectividade; a liberdade sem fim. A fraternidade e a igualdade esquecidas. Uma mão cheia de areia escaldante do deserto que escorre dedos abaixo. Paixões, amores e seres humanos esquecidos, perdidos. Uma vela, luz. Iluminação; iluminações, beleza sem fim, vida sem certezas e o tempo que não pára. A ampulheta parte-se; nómadas de pele azul indigo e Rimbaud cabelos rebeldes ao vento. Com ou sem luz, com ou sem tempo, falta algo. Sobram o instinto e as entranhas: não gosto da razão. Só do sol e do calor, das maravilhosas e belas mulheres de pele morena, da melancolia (como um longo blue, em tom menor), mas também da alegria. E a simplicidade, a honestidade e a fome e a sede e a doença e as crianças a chorar… Por esse mundo fora. E o sul, sempre o sul, e África – onde nasci, com tanto orgulho. O sul da desgraça contra o norte da razão e do capitalismo das mais-valias. Por fim, a revolta, a vontade de matar, de vingar quem não pode; a raiva profunda, outra vez, a vontade de matar. Peço pelos inocentes e necessitados, porque hoje, nada mais posso fazer… Os deuses nos muitos Olimpos deste mundo não querem saber senão de si próprios.