sábado, 20 de setembro de 2008

o homem dos dias tristes



Todo ele é seco como uma folha caída no chão pela forca da tristeza do Outono. Todo o seu ser, físico e espiritual. Pelo menos é o que me parece daqui; a duas mesas de café de distancia. Falo acerca de um local onde vou todos os dias tomar um café, ao fim da tarde. A pessoa de quem eu falo vi-a, pela primeira vez, no fim do verão passado, num dia feio, cinzento. Apesar de quente prometia chuva. Este homem de quem lhes falo, nunca o vi num dia bonito, com sol, pessoas a sorrir e a discutir assuntos sem interesse – tal como a qualidade dos anzóis para a pesca ou a ultima aquisição de uma qualquer equipa de futebol. Não, nada disso. Neste café, já de si semi-obscuro devido à estranha iluminação, há um homem que me fascina: só o frequenta nos fins de tarde de dias tristes. Pelo menos, assim me parece. Já experimentei várias vezes sair de casa em dias assim, só para ver se ele esta lá. E a verdade é que lá está sentado na “sua” mesa – sempre a mesma; num canto está a sua figura esguia – muito magra mesmo –, como a de todos aqueles que bebem muito. À sua frente, na mesa estão uma chávena de café, há muito bebido, e uma taça de tinto que ele vai tomando em golinhos muito pequeninos, de tal forma que chega a irritar quem está atento à sua cerimónia, pois parece que a taça não tem fim. No entanto, de quando em quando, lá vem o empregado, que é também o proprietário, encher-lhe o copo novamente. Durante o muito tempo em que permanece no café mantém-se absolutamente imóvel, exceptuando o movimento do braço direito para segurar no copo e nos cigarros. Tem sempre um aceso. Aquela impassibilidade é assustadora – pelo menos para mim que fico ali horas fascinado à espera de algo inédito da sua parte. Isso nunca aconteceu… O seu rosto tal como o corpo esta imóvel, seco e encovado, pleno de rugas. Preocupações, creio. Apreensão: quem se lembra da face de Platão em “A Escola de Atenas”, pintada pelo grande Rafael sabe ao que me refiro. Ao que ouvi, sussurrando, aqui e ali, aquele homem já ganhou e perdeu inúmeras fortunas ao jogo. Já ouvi um comentário nestes termos acerca deste homem que só surge nos dias tristes: “Como é que ele alimenta a família?” ou “Como é que ele arranja dinheiro para os copos?”. Ninguém tem resposta para estas questões. Claro que como acontece a todos os alcoólicos e a todos os jogadores, este tipo quer manter uma réstea de dignidade; assim, está sempre impecavelmente barbeado e vestido, apesar de a sua indumentária parecer sempre a mesma. O olhar deste homem, com cerca de 55 anos de idade, esta sempre fixo, sem pestanejar, algures no curto horizonte que é o balcão em alumínio do estabelecimento. O seu espírito parece também permanecer inerte. Ele transmite uma semiótica da tristeza que parece magicamente colar-se a todos os que se encontram no local – trabalhadores das obras, pessoas que chegam dos seus empregos nos comboios suburbanos e vão ali beber um copo (a estação de comboios fica ali mesmo ao lado), antes de se dirigirem para o martírio do lar, desempregados de muito longo prazo, etc. Olhamos com admiração e algum encanto para aqueles que, como ele, o homem dos dias tristes, voluntariamente voltam as costas à mediocridade do comportamento comum. Os que têm a coragem de fazer isto são considerados perigosos e, muitas vezes, loucos porque são honestos, simples e livres: as qualidades mais perigosas que um homem pode possuir.
É clara e comovente a sua vontade inquebrável de querer ser aquilo que é. Um dia tive oportunidade de assistir ao fim da sua solitária orgia dionisíaca: o acto de pagar. Para isso, já depois de muito bêbedo, faz um esforço sobrenatural para se levantar sem cambalear – é o ultimo acto da sua réstea de dignidade, de que já falei – como se todos os que ali se encontram não conhecessem já o seu estado. Uma vez em pé, tira as coordenadas a um ponto disponível do balcão e, com a voz arrastada, dirige-se ao empregado: “Quanto é que eu devo?”. Depois, sem se dirigir a ninguém encaminha-se para a porta, vacilando o menos possível. Depois disso vai sentar-se numa tasca que fica a cem metros do local e repete o ritual: um café e uma taça de tinto que é enchida muitas e muitas vezes antes de ir embora para casa, ao fim da noite (nas tabernas parece que é sempre de noite…). Um dia fui espreitar a tasca e lá estava ele sentado, sozinho, num pequeno banco, com o olhar fixo numa parede, rosto talhado em pedra, frio. A caligrafia do(s) seu(s) estado(s) de espírito é ilegível.
Na sua infinita sabedoria, ele tem a noção de que a vida é assim: cada um escolhe e cumpre o seu destino. Nos extremos da eternidade está o nada, não interessa qual escolhemos desde que cumpramos criteriosamente a nossa tragédia inevitável e inimitável.

Excerto de contos malvados a publicar brevemente em lulu.com

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