Para a belíssima Teresa Ribeiro,
que tem os olhos verdes mais bonitos deste lado do mundo
I.
Debaixo de uma muito bela, erodida e multi-secular ponte saem brumas sem fim, talvez porque a temperatura do ar é tépida e a água está gelada. É uma intuição. Não sei… Não percebo nada de fenómenos físicos. Essas brumas, fabulosas, fantasmagóricas e assombrosas, permanecem à tona da água, à medida que se vão afastando da ponte.
Assumem formas estranhas, por vezes, figuras históricas ligadas à cidade; noutras alturas, apareciam homens e mulheres de aspecto duvidoso, que calcorreavam os passeios, muito molhados, húmidos e mal iluminados de Veneza.
Estou numa gôndola, que aluguei barata por várias horas, para estar à vontade, num pequeno canal, tanto em largura como em extensão, isso torna-o ainda mais maravilhoso.
Em breves segundos, chegarei, ao objectivo esperado, e desejado, há cerca de dois anos. A gôndola pára, num velho ancoradouro, junto de um ainda mais antigo palácio.
Esta viagem, há muito adiada mas muito desejada, a ponto de ser objecto de sonhos e pesadelos, estava a chegar, simultaneamente, ao princípio e ao fim. Dentro de alguns minutos tudo estaria acabado. A finalidade de isto tudo consistia em fotografar um ramo de flores; eu vira esse ramo de flores durante a última viagem à cidade dos Doges, na altura não tinha filme na máquina e quase chorei de raiva e frustração. Partia no dia seguinte de manhã: nada a fazer. Apenas esperar e, para dizer a verdade, não conheço um único ser humano ou não humano que goste de esperar.
De repente ali estava! Um objecto de uma beleza incomum, um bouquet de flores, esculpido em pedra, digno da mais bonita mulher. Esculpido há muitos anos, no séc. XVI, na pedra do ancoradouro, já na altura, muito gasta, por certo. Do meio das pétalas saía uma forte argola de um qualquer metal quase indestrutível, cuja designação desconheço, que deve ter sido amarelado. As flores e a argola estão meias verdes, não tendo perdido quase completamente as suas cores originais, que ainda surgem aqui e ali.
A gôndola pára, fica a ondular levemente, há pouca luz, alguns reflexos magníficos dessa luz na água que marulha ao bater na pedra do passeio, tudo muito suave. Menos mau para fotografar. As condições não são as ideais, mas a vontade de guardar para sempre aquelas flores é superior.
Naquela argola devem ter estado atracadas muitas gôndolas engalanadas que transportaram belíssimas mulheres e elegantes galãs para festas mais ou menos secretas, em que ninguém sabia quem era quem, a maior parte das vezes isso nem interessava. Essas funções deviam decorrer no velho palazzo que se encontrava atrás do ancoradouro. No seu tempo deve ter sido um fantástico lugar, agora caía aos pedaços, que se podiam apanhar na calçada. Agora, longe no tempo e no espaço, lembro-me que podia ter apanhado, como recordação um desses pequenos estilhaços cadentes. Quem segurava o velho imóvel era uma jovem prostituta veneziana, encostada a ele, no meio da névoa podia ver-se que era uma bela rapariga, elegante também, o que não é comum naquela profissão, Uns escarpins negros, da mesma cor dos collants e da saia de veludo mate, a blusa é bordeaux com um decote interessante, sem soutien por baixo podem adivinhar-se uns perfeitos peitos, tem uma perna flectida, com a base do sapato encostada à parede do velho palazzo. É ela que o sustenta. Por ali movem-se outras figuras fugidias, sobretudo homens, naturalmente. Faço uma fotografia da cena que, mais tarde, me agradou tanto que, ainda hoje, está pendurada na minha sala.
Entretanto desatei a fotografar o ramo de flores, gastei vários rolos, fotografei de todos os ângulos que consegui, com a ajuda do meu paciente gondolieri. Depois, um pouco cansado, mas eufórico, lancei um último olhar a tudo aquilo, sem me esquecer da sensual prostituta e fui para o hotel, já ansioso por ver o resultado da revelação e ampliação das fotografias a preto e branco, que incluíam, também a ponte das brumas. Nessa noite mal consegui dormir; pensava sobretudo na rapariga e nas flores de pedra. De manhã acordei ainda cansado, demasiado cansado para viajar. Mas o regresso já estava marcado havia muito.
Durante muitos meses, aquelas rosas inquietaram-me, queimaram-me os neurónios, apaixonaram-me. Quis saber tudo sobre elas. Falei com especialistas em História da Arte, especialistas na cidade de Veneza, comprei a “bíblia” (em 3 volumes), “The Stones of Venice”, e nada, nenhuma referência. Os meus sentidos estavam suspensos daquele mistério, tão fascinante.
Contactei muita gente, encontrei, por fim, um velho restaurador de móveis veneziano que me enviou, por e-mail a explicação para tudo o que eu queria saber. A obra de arte tinha sido esculpida, desesperadamente, durante cerca de três semanas, por um jovem frequentador de uma das festas do palazzo. Jogador, falido, pobre, filho de nobres – fora deserdado, por mau comportamento, não tinha onde cair morto -, roubara umas fatiotas elegantes e fora à recepção, aprveitava para se alimentar, beber uns divinos copos de vinho, observava as belas aristocratas e, com sorte, talvez dormisse com uma… Deu de caras com uma bela morena de olhos cor de esmeralda. Os seus sentidos morreram para tudo o resto, Durante toda a noite pensou na forma de conhecer a rapariga, quando arranjou coragem ela já tinha partido há muito. Desapontado retirou-se, sem saber que rumo dar à vida sem a deusa que vislumbrara. O restaurador enviara-lhe, também, via internet, uma cópia de um manuscrito, onde nunca era designado o nome do jovem, com oito páginas, onde supostamente o amante tinha fixado as suas amargas impressões sobre aquele amor nunca consumado. Dez anos passados, afirmava-se no manuscrito – cuja veracidade ficava por provar… -, nunca voltara a vislumbrar a mais bela criatura sobre a qual colocara os olhos. Segundo o correspondente veneziano, o amante frustrado morrera, tuberculoso, pouco depois de redigir este manuscrito que desejava vender por preço simbólico (dizia ele!),
Apesar de tudo, a história agradou-me. Teria preferido um final feliz - mas toda a gente sabe que não existe nenhuma história com final feliz... - para o pobre rapaz; teria, também, gostado de ter a certeza de que o manuscrito era verdadeiro.
II
A verdade é que todas estas lembranças me ocorrem numa esplanada, em Carcavelos, onde estou descansado a beber um café, enquanto espero alguém. Os pensamentos atropelam-se confusos, de tal forma que, às tantas, já não sei se toda aquela história passada na cidade dos Doges é verdadeira, ou não passa de pura imaginação. Mas olho para cima da mesa e vejo uma caixa grande cheia de fotos, abro-a, vejo a imagem que está em cima de todas as outras e as dúvidas dissipam-se. Estava um dia quente e eu encontrava-me à sombra, de óculos escuros a escorregar pela cadeira abaixo. Era um dia de sol maravilhoso e a rapariga – uma bela jovem amiga minha – que eu esperava, era ainda mais bonita.. Estava nuito atrasada (eu levara as fotografias para lhe mostrar, já que, na minha cabeça ela seria parecida com a misteriosa veneziana), mas não há mulher bonita que chegue a horas a lado nenhum. Não há registo disso na história da humanidade,. Faz parte da coisa. É assim há séculos.
De repente, o tempo começou a escurecer. No ar vagueiam ondas de calor sufocante, O vento levanta-se e trás pequenas partículas que se parecem com pequenos grãos de areia vermelha. Na verdade, são mesmo grãos de areia vermelha: vêm do Norte de África, do deserto do Sahara. É um vento que se chama Sirocco (belo nome para um vento) e, que por vezes, atinge o Sul da Europa. É um fenómeno que provoca mudanças no humor e na saúde de algumas pessoas, depressões, dificuldades em respirar e outras coisas, provavelmente piores. Apesar da curiosidade, pensei em ir para casa, pois não é agradável pensar que aqueles pedaços do deserto se estão a instalar nos pulmões, garganta e nariz, mas lembrei-me da amiga por quem esperava, e tinha tanta vontade de olhar para ela para os seus belos olhos verdes esmeralda. Lembrei-me logo da bela veneziana que tinha provocado aquele ataque de amor e paixão ao pobre rapaz.
Decidi ligar-lhe. Agarrei no telemóvel, procurei o seu número e liguei. Disse-me: “Não gastes muito dinheiro. Estou fora de Portugal. Mas que coisa estranha estava longe de pensar receber um telefonema teu…” A minha vontade foi desligar o telefone, mas acalmei ao lembrar-me da amizade que nos unis há tantos anos. Perguntei-lhe, “onde estás?”
Tinha-se esquecido completamente de mim e do nosso encontro. Também, pensei eu, quem é que trocaria uma viagem a Itália por um encontro com um amigo! Mulheres bonitas… Estão sempre apaixonadas por si próprias. Nada mais existe a não ser o seu belo umbigo!
Contou-me que estava a beber um espresso na Praça de São Marcos, em plena Veneza, e estava a assistir a um fenómeno comum naquela cidade, a chegada do Sirocco, que os habitantes locais bem conhecem. “Não sei se hei-de ir para o hotel, se vou dar uma volta…”
Estranhas coincidências. Apesar de triste e desiludido, não referi sequer que tínhamos combinado beber um café, nesse momento, seria ridículo. Decidi ir para casa curtir a neura, com uma dor de cabeça infernal.